Posse Civil vs. Posse Indígena

A distinção entre posse civil e posse indígena é essencial para a compreensão dos direitos territoriais dos povos indígenas e para o debate jurídico em torno da demarcação de terras. Essa diferença não se limita apenas aos aspectos legais, mas reflete uma visão de mundo distinta, que vai além do direito de propriedade e envolve questões culturais, históricas e espirituais.

Posse civil: uma visão eurocêntrica e individualista

No ordenamento jurídico brasileiro, a posse civil está definida no Código Civil de 2002, mais especificamente no Artigo 1.196. De acordo com o código, o possuidor é aquele que exerce, de forma plena ou não, os poderes inerentes à propriedade, como o uso, gozo e disposição do bem. A posse civil, portanto, está inserida dentro da lógica da propriedade privada, com uma concepção individualista que privilegia a relação entre o indivíduo e a terra como um bem material.

Essa abordagem é profundamente influenciada por valores eurocêntricos, que moldaram o sistema jurídico brasileiro desde sua formação, e pressupõe que a terra é um bem a ser explorado economicamente, seja para a produção agrícola, a extração de recursos naturais ou a especulação imobiliária. Nesse sistema, a terra é tratada como algo que pertence ao proprietário, podendo ser comprada, vendida ou transferida livremente.

Posse indígena: uma relação coletiva, cultural e espiritual

Por outro lado, a posse indígena não pode ser reduzida a esses parâmetros jurídicos. Ela reflete uma relação coletiva, tradicional e cultural que os povos indígenas mantêm com a terra. Para esses povos, a terra não é apenas um bem material, mas sim uma fonte de vida, que sustenta suas práticas culturais, espirituais e sociais. A terra é a base de sua identidade coletiva e o local onde suas histórias e suas tradições se perpetuam, sendo considerada também uma morada dos ancestrais.

A Constituição Federal de 1988 reconhece a ocupação tradicional como fundamento do direito indígena à terra, um conceito que vai além da simples posse física e se estende a uma relação histórica, cultural e espiritual. De acordo com o Artigo 231 da Constituição, os povos indígenas têm direito às terras que tradicionalmente ocupam, mesmo que não possuam a formalização de posse registrada ou que não cumpram os requisitos da posse civil. A posse indígena é, portanto, uma manifestação do direito originário, que existe independentemente da regulamentação formal do Estado brasileiro, remontando a tempos anteriores à própria formação do país.

A tese do marco temporal: uma ameaça à posse indígena

A tese do marco temporal busca limitar o reconhecimento e a demarcação de terras indígenas à comprovação de ocupação física em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa tese impõe um critério arbitrário e jurídico de temporalidade, desconsiderando as dinâmicas de ocupação indígena, que não se baseiam na posse individualizada e registrada, como prevê o modelo da posse civil.

Ao aplicar a tese do marco temporal, o Estado ignora o histórico de violência, expropriação e esbulho possessório que os povos indígenas enfrentaram ao longo dos séculos, especialmente após a chegada dos colonizadores. Muitos povos foram expulsos de seus territórios e forçados a viver em condições precárias, longe de suas terras tradicionais. Impor que os indígenas provem a ocupação de suas terras em 1988 é, portanto, revitimizar essas comunidades, que já enfrentam a devastação de seus modos de vida e a perda de suas terras devido a décadas de violência e marginalização.

Além disso, essa tese desconsidera a natureza coletiva e tradicional da posse indígena, buscando enquadrá-la em um sistema jurídico que não reflete a forma como os povos indígenas vivenciam e se relacionam com a terra. A terra, para esses povos, não é um bem a ser comprado ou vendido, mas sim algo que pertence à coletividade, sendo compartilhada e cuidada por todos.

Direito originário e a luta pela garantia da posse indígena

O direito indígena à terra é originário, ou seja, ele existe desde antes da formação do Estado brasileiro, e está protegido pela Constituição de 1988, que reconhece o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras e à preservação de suas culturas. Esse direito é independente de qualquer ato formal de reconhecimento por parte do Estado e é anterior à colonização.

As terras indígenas, portanto, não são meramente uma posse material, como as terras de um proprietário civil. Elas fazem parte de um legado cultural e espiritual, que define o pertencimento e a identidade de um povo. A Constituição de 1988, ao reconhecer o direito indígena à terra, respeita e afirma essa relação milenar entre os povos indígenas e seus territórios, que não pode ser limitada por marcos temporais ou critérios de posse civil.

Superando visões eurocêntricas

A defesa da posse indígena e a luta contra o marco temporal exigem que superemos uma visão eurocêntrica e individualista da posse de terras, e reconheçamos as especificidades da relação que os povos indígenas mantêm com seus territórios. Ao tentar impor critérios de posse civil às terras indígenas, a tese do marco temporal busca enquadrar um sistema de direitos territoriais que não reflete as realidades e as culturas dos povos indígenas.

É fundamental que o Brasil avance no reconhecimento e na efetivação do direito originário dos povos indígenas à terra, respeitando suas formas tradicionais de posse e seu direito à autodeterminação. Somente assim, poderemos garantir a proteção das terras indígenas, preservar suas culturas e promover um futuro de justiça e igualdade para todos.



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